O Tribunal Regional Federal da
4ª Região (TRF4) deve julgar, nesta terça-feira (12), em Porto Alegre (RS),
sobre a posse de uma das áreas de direito territorial da Comunidade Quilombola
Invernada Paiol de Telha. Localizada em Reserva do Iguaçu (PR), a Comunidade é
alvo de um recurso de apelação movido pela Cooperativa Agrária.
O recurso em julgamento busca
reverter uma decisão desfavorável à Cooperativa, no âmbito de uma ação de
interdito proibitório. Com ida para justiça federal em 2015, a ação requeria
que as famílias da Comunidade quilombola fossem impedidas de residir na área em
julgamento até encerramento do processo de desapropriação e do pagamento da
indenização à Agrária - uma das etapas finais do longo processo de titulação de
um território tradicional quilombola. Com decisão favorável à comunidade pela
11ª Vara de Curitiba (PR), a Cooperativa busca - em 2ª grau - reverter a
decisão inicial.
Caso os desembargadores acolham
o recurso de apelação movido pela Cooperativa, a decisão pode significar o
despejo de cerca de 50 famílias residentes na área, por meio de uma reintegração
de posse em favor da Cooperativa.
Em recente manifestação, o
Ministério Público Federal opinou pela rejeição do recurso movido pela Agrária. Considerando o direito à posse dos remanescentes de quilombos de área já
reconhecida como quilombola e declarada de interesse social, a situação de
vulnerabilidade da comunidade quilombola, a necessidade de se evitar intenso
conflito fundiário, e o estágio avançado da ação originária, a solução mais
adequada é confirmar a manutenção da posse da comunidade quilombola?, declara
em um trecho.
Na manifestação o órgão faz
referência a um conjunto de contextos e documentos que asseguram na lei e no
processo administrativo o direito de posse coletiva à Comunidade. Antes mesmo
do ajuizamento da ação pela Cooperativa o Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (Incra) já havia reconhecido, em 2014, por meio da Portaria de
Reconhecimento nº 565, a área como território quilombola Paiol de Telha. Em
2015, mesmo ano de ajuizamento do interdito, a Presidência da República emitiu
decreto de desapropriação que compreendia a área em julgamento. Em avançada
fase de desapropriação, a autarquia obteve em 2021 a imissão
de posse das áreas que ainda não foram tituladas. (Veja mapa)
Ainda que não seja propriamente
a titulação da área, a imissão antecipa os efeitos de titulação até que a
efetiva titulação aconteça, permitindo às famílias o exercício da posse
tradicional quilombola sobre essas áreas. Isto porque, como medida liminar, possibilita
que a autarquia federal transfira a posse das matrículas para a associação
quilombola da comunidade. Com isso, o andamento do processo já permitia - em
termos legais - o direito de ocupação das áreas e organização da vida no
território tradicional pelas famílias.
Para o MPF o acolhimento do
recurso, com a reintegração da área pela Cooperativa, no decurso do andamento
do processo de titulação geraria uma violação em larga escala dos direitos
territoriais quilombolas e mesmo risco à sobrevivência da Comunidade.
"Seria um enorme contrassenso
permitir a retirada de remanescentes de quilombos dos seus territórios étnicos - pondo em risco a sobrevivência do grupo- para, em seguida à desapropriação,
restituir a eles as mesmas terras, além de configurar um atentado indesculpável
aos direitos fundamentais destas populações, com a completa frustração dos
objetivos subjacentes ao referido art. 68", aponta o MPF.
Ônus da paralisação
Na avaliação da Terra de Direitos, organização que assessora juridicamente a Comunidade
Paiol de Telha, ao reivindicar a reintegração da área em favor da Cooperativa,
a Agrária transfere novamente para as famílias o ônus da lentidão do Estado em
finalizar o processo de titulação do território tradicional.
Isto porque os danos gerados
pela lentidão do estado em assegurar a posse coletiva do território tradicional
à Comunidade é objeto, inclusive, de uma Ação Civil Pública (ACP) ajuizada em
2018 pela Associação Paiol de Telha. Em março de 2019 a juíza federal Sílvia
Regina Salau Brollo, da 11ª Vara Federal de Curitiba, concedeu liminar para
obrigar a autarquia federal a titular uma área de 225 hectares, já que a União
já tinha recursos para desapropriação disponíveis desde 2016. A juíza
ainda determinou
que a União repassasse ao Incra o montante de 23 milhões de reais, no prazo
de 6 meses, para que seja dado seguimento à titulação.
Diante da paralisia do Incra, a
medida judicial foi determinante para garantir a
titulação parcial do território em 2019 - de área de 225 hectares,a
única comunidade quilombola parcialmente titulada no estado. A pequena área é
insuficiente para assegurar condições para reprodução da vida às mais 300
famílias da Comunidade e muito distante dos 2,9 mil hectares oficialmente
reconhecidos pelo Incra, ou seja, apenas 7,8%, como de direito da Comunidade.
Mais ainda, o repasse não
ocorreu. No trânsito da Ação Civil Pública o Incra e a União afirmaram, em
2019, que a demora na regularização da titulação total da área decorre por conta
da insuficiência de recursos financeiros para pagamento das
indenizações.
Passados dois anos o orçamento
destinado à desapropriação de áreas para fins de titulação evidenciam que o
argumento e ação da administração pública estão alinhados: no ano de 2021 o
governo executou a rubrica de apenas R$ 956,3 mil para fins de desapropriação,
de acordo dados
mapeados com o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). O
baixíssimo valor, na prática, significa a paralisação da titulação quilombola.
Opositor à titulação quilombola, o presidente Jair Bolsonaro (PL) cumpre à
risca a promessa feita em campanha eleitoral de não assegurar " nem um
centímetro para quilombola ou reserva indígena".
De acordo com a assessoria jurídica da Terra de Direitos, a Cooperativa poderia desenvolver com outras ações para pressionar a União para pagamento da indenização da área, com menor prejuízo às famílias, como ingressar na Ação Civil Pública, como terceira parte interessada ou propor uma ação ou mesmo seguir em acordos com o Incra, entre outras possibilidades.
Terra de Direito - Diário Reservense